segunda-feira, 9 de julho de 2007

Entrevista - Otto

Pra estrear com o pé direito: Nos dias 19 e 20 de maio, o pernambucano Otto se apresentou em Salvador, na sala principal do Teatro Castro Alves, dentro do projeto MPB Petrobrás. O Umabarauma esteve presente às duas apresentações e aproveitou para bater um papo com o cantor e percussionista. Na entrevista, Otto discorre sobre religiões afro, música e maconha. Ao final você encontra uma resenha dos shows.






Umabarauma: Referências ao candomblé são sempre recorrentes nas suas letras. Qual foi a tua formação religiosa, como foi que você travou esse primeiro contato com crenças afro-descendentes?

Otto: Desde Bú (a babá), desde Cumade Júlia. Em 74 eu ganhei de Vanda, uma amiga da minha mãe, um disco de Martinho. Foi por meio da música, de pessoas que naturalmente freqüentavam a minha casa, que eram queridas e que faziam parte dessa religião. Não chamo nem de religião. Ela celebra a ancestralidade. Essas pessoas sempre foram bem vindas, como padres, etc, na minha casa. E eu me identifiquei prontamente pela música, pelo samba...

Umabarauma: Não foi uma coisa sectária...

Otto: Não. Eu estudei em colégio de padres, ia à missa, fui coroinha de D. Hélder, várias coisas.


Umabarauma: É comum em suas entrevistas e mesmo nos shows, a discussão acerca do poder de escolher a música que se quer ouvir. Qual o alcance desse poder de se ouvir uma música ou a liberdade que existe nesse processo? Como é que você percebe o caminho de um ouvinte que não tem acesso à sua música, que não tem acesso às mídias que divulgam o seu produto, chegar a conhecer o seu trabalho?

Otto: Vamos por partes. Primeiro, a importância de se escolher a própria música: Isso é uma coisa que eu peguei de uma filosofia, a filosofia de achar que quando a gente tem acesso à música, a gente já tem outros acessos. As pessoas que têm acesso à sua própria música, que gostam daquilo, têm uma coerência natural da arte. Já se mudam outras coisas. Já se muda a qualidade de vida, mudam os critérios pelos quais ele vai viver no mundo. A outra coisa é como minha música chega a outras pessoas: Pelo tempo, por projetos como este, a preços populares, num teatro deste tamanho, onde as pessoas se sentem bem, do programa, sabe... de participar. Essas arquiteturas são feitas pra isso. Acho que o teatro tem de trabalhar nisso. Se o teatro Trabalha a 14 reais, 7 reais, ele está sendo muito coerente e dadivoso. Ele coloca essas pessoas...
Umabarauma: Você não tomou nenhuma regulagem depois que mandou todo mundo levantar, hoje? Por que aqui não pode vir de bermuda, não pode vir de sandália...

Otto:
Não, não! Pelo contrário. Você vai pra Europa, vai pra qualquer lugar...(pausa).Não é isso, o problema não é esse. As pessoas estavam afim de celebrar e celebraram, de dançar, dançaram.

Umabarauma: A gente tava assistindo o show sentado e estávamos muito inquietos, parecia que tínhamos formigas dentro das calças...

Otto: Mas o teatro, ele é feito disso, de cadeiras. Não é feito pra não sentar. Algumas vezes eu acho que há uma empolgação da platéia que é maior até do que a logística que compra. Mas é perfeito, assim... Ele é feito pras pessoas sentarem. Eu adorei. Se eu consegui tirar essas pessoas daí (dos seus lugares) foi um momento de celebração. Eu tenho certeza que meu público não é dado a vandalismos, porque tem essa coisa com os outros. Eu acho que o público é... é o momento, senão seria diferente. No fim, quem entra, quem toca num lugar como esse aqui, sabe o poder que é. O tamanho é grandioso, modifica tudo. O padrão de sua voz é outro. Uma coisa é você cantar em uma garagem, outra coisa é você cantar num teatro com uma altura dessas. Foi maravilhoso. Mas... é isso. Porque eu tô falando isso? (gargalhadas).

Umabarauma: Em entrevista à revista Caros Amigos, Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado,revelou que por certo período de tempo houve uma espécie de obscurantismo entre a música produzida nas diferentes regiões de Pernambuco. Comentou que o surgimento do manguebit não rompeu as muralhas de Recife e não chegou imediatamente ao sertão, e que os periódicos pernambucanos, enquanto celebravam o movimento enaltecendo a “cultura pernambucana”, desconheciam completamente e não noticiavam manifestações artísticas vindas do interior, de cidades como Salgueiro, Petrolina, Pedro Velho...

Otto: (confuso)... Ele deve ter sua razão, Lirinha é muito inteligente. Talvez seja o ângulo dele. São milhares de ângulos, milhares de critérios, e o dele eu respeito muito. Se ele tá falando isso, deve ter alguma coerência. Ainda bem que ele se prontificou a analisar a coisa por esse ângulo, é muito generoso da parte dele. Eu acho que Recife, como qualquer capital, fora ou dentro do eixo, passa por problemas regionais. Acho que Brasil ainda precisa de muita sensibilidade pra atingir uma regularidade na tentativa de solver esses problemas. Nesse momento o nosso Nordeste, o nosso interior... (pausa). Muito mais Arcoverde! Se é difícil chegar ao Recife, se é difícil romper as barreiras do Recife, imagina outras. Mas eu acho que... (Pausa). O Luís Gonzaga é de Exú, é do sertão e é um homem do Brasil todo, como o Lirinha também. Não chegam, mas a gente sempre tá mandando. Serra Talhada, Arcoverde, que é a cidade dele, sabe... o Lirinha tem sua cultura e ele foi criado dentro dessa cultura, ele é uma voz pensante. Talvez seja difícil chegar além do Recife, mas é mais difícil ainda chegar no interior, você tá entendendo? Mas ele vem, chega e chega forte. Ainda por cima tá levando a nossa bandeira do interior. Eu sou do interior, da mesma região que ele. Posso dizer que somos bons representantes dessa área, que é a mais problemática, no sentido de informação, de comunicação. É como a Suíça e o Brasil: são distantes , mas também têm os seus atalhos.

Umabarauma: Há algumas semanas houve uma discussão em escala mundial acerca da descriminalização do uso da maconha que culminou com marchas em mais de duzentas cidades. Foi um debate rico e diverso, não-baseado em um panfletarismo vazio. Por que aqui ainda temos aquela cultura de que pessoas públicas não podem se pronunciar a respeito, sendo você um cara que não se melindra em falar, até nas suas letras, não tem pudores...

Otto:
Eu acho que o usuário tem de manter a coerência, nunca perder a coerência com seus filhos, sua realidade, porque não tem um fator que... (pausa) É melhor até que a bebida. Eu acho que o ser humano lidaria melhor fumando um produto natural do que bebendo. Mas eu acho que essas coisas vão caindo em desuso. O mundo ele vai ter drogas, drogas... vai ter repressão, mas repressão é covardia. Enquanto houver covardes, a gente vai esperando um pouco. Se um dia me pegarem fumando o meu baseado, eu vou dizer: "por favor senhor, não me bate, me leve!" (risos). Vou pra delegacia e vou conviver com isso naturalmente. Quando eu tinha 14 anos eu falei pra minha mãe. No mundo, já se quebraram várias outras coisas, e essa coisa da maconha a gente não deve nem... (pausa). Deixa quieto! Tem que deixar pra lá, não tem que criar debates com covardia, com hipocrisia. Ela é mais leve do que a bebida, ela é mato, é natural, medicinal, tem toda uma cultura. O Brasil é um país misturado, de africanos, de raízes de campo, de mato. Não tem como ser contra o que é natural.

Umabarauma: Inclusive um dos pontos do manifesto que vai ser levado à conferência internacional anti-drogas da ONU, ano que vem, é um pedido de desculpas formal do governo brasileiro às populações afro-descendentes. Por muito tempo se enquadrou o uso de maconha e candomblé, ou prática de magia, de acordo com a época, no mesmo artigo...

Otto: Mas eu vou dizer uma coisa... Olha, em 1911, 1912, Mãe Menininha foi presa aqui, com 19 anos. Na delegacia fizeram o B.O. dela, por prática de "magia". E vejam a mulher que ela foi! Essa luta, essa coisa se quebrou muito no dia de hoje, não dá nem pra gente discutir mais.Tem tanta coisa no mundo. Quando você entra no candomblé, quando você conhece o candomblé, quando se conhece o convívio do povo com o candomblé, você vê que não tem esse bicho de sete cabeças.

Umabarauma. Já voltamos ao candomblé ... Aqui na Bahia vive-se um momento de estranhamento entre cristãos fundamentalistas e aqueles que cultivam crenças afro-descendentes. Rixas movidas por sectarismos e intolerância religiosa. Em Salvador, por exemplo, há a recente polêmica do “acarajé cristão”, em que baianas ligadas a igrejas evangélicas abominam as vestimentas folclóricas, descaracterizam toda a indumentária da baiana de acarajé, e muitas vezes condenam os fiéis que comem nos tabuleiros tradicionais.

Otto:
Aí eu vou te dizer uma coisa... só a Bahia pra inventar essas coisas pra discutir. Porque (aqui) as raízes do candomblé são muito fortes. Que isso sirva de alerta contra o radicalismo.







Resenha dos Shows
por Marcel Bane



Difícil imaginar uma ciranda de malucos em alta rotação em pleno palco da nobilíssima Sala Principal do Teatro Castro Alves. Mais difícil ainda imaginar o que se passava pela cabeça da produção do show quando decidiu realizar um show de Otto lá. A administração do TCA bem poderia, de imediato, pensar em colocar cintos, nas cadeiras. E manter as chaves com os seguranças, tamanha a preocupação destes em acalmar os ânimos do público, que só quer se levantar. Ou abandonar de vez a idéia estapafúrdia de trazer bombas humanas para se apresentar em seus palcos. Alguns freqüentadores assíduos das poltronas rubras confortáveis do teatro, aquelas pessoas alternativas não sei-ao-que, que adoram ficar no Foyer, tagarelando sobre políticas culturais, tomando uma xícara de café, e que vai ao teatro “só para ver o que se passa” , ficaram indignados quando o público resolveu, enfim, levantar, maculando a nobreza do ambiente. Um concerto envolve troca entre artista e público. É assim que funciona. Peraí... Não é o show da Maria Bethânia? Nem do Chico Buarque? Quem é aquele maluco?

Otto é um showman iconteste. Um espetáculo, ele mesmo. Se não houvesse a banda, apenas o homem e seu pandeiro, ele carregaria o show por quase duas horas. Seria uma espécie de Otto Talk Show, com direito a gracejos, cambalhotas, pulos, troça, sem sinais de cansaço. Não que a banda seja um acessório, herege! As engrenagens da roda que faz essa ciranda de maluco girar são bem azeitadas. A guitarra de Fernando Catatau é técnica, óleo puro. Júnior Boca e Rian Bezerra vaselinam os dedos antes de empunhar sua guitarra e seu baixo, respectivamente, e dar ritmo à coisa toda. Beto Apinéia, dono de uma técnica de Bateria vigorosa, extremamente bem marcada, atonal, cheia de repiques que remetem a Pupillo, da Nação Zumbi. A percussão de dois que soa como dez, a cargo de Marcos Axé e André Male derramam azeite doce sobre a salada musical. E por fim, Daniel Ganjaman, personagem de mangá adolescente qualquer, daqueles tipo Bey Blade (não é, mas poderia ser), e seus teclados são puro KY. O resultado de tanta lubrificação é um som bem mais orgânico que os registros em Cd. A música, enfim, entra sem dor e sem interferências. A banda sobressai , revelando a riqueza harmônica, os intrincados tempos das músicas, muitas vezes escondidos atrás de tantos elementos eletrônicos. Proponho aqui um desafio a todos esses artistas que fazem MPB moderninha pra gringo: Se Fernanda Porto deixar as pick-ups em casa, e a Bossa Cuca Nova puxar a tomada do computador, quanta música sobra?

O repertório, não surpreendentemente, foi basicamente o mesmo do Dvd MTV apresenta. Desde o início, com Anjos do Asfalto, não faltaram seus maiores êxitos. De Dias de Janeiro, a Ciranda de Maluco, de Tv a Cabo/ o que dá lá é lama, a Bob, passando por Nebulosa , Low e uma versão envenenada de Renault/Peugeot.

Otto é um coquetel molotov a base de whisky. Esquece o set list, dá cambalhotas, atropela as letras, enrouca a voz, tal qual um Tom Waits possesso. Lá pela metade do show da primeira noite, depois dos apelos públicos por uma permissão de levantar das cadeiras, ele consente: “Levanta aí! Eu tô falando Português?!”.

Na segunda noite, apenas água, pra reidratar. “Sempre que venho aqui, vou parar no mercado do Peixe. Bebi pra Caralho!”, Entrega. Curiosamente, apesar da água, a H2O, o show rola mais descontraído. O público, toma a frente do teatro de assalto logo no início. A ciranda de malucos começa a girar, inspira o homem sóbrio em cima do palco. Ele desce, caminha entre os seus, improvisa. Mete uma versão de Chame Gente, de Morais Moreira. Chama ao palco o mestre Lourinbau, que abriu o show em ambas as noites. Otto está estupefato. Nas suas próprias palavras: “ Ganhei um medalha hoje” . Está deslumbrado por ter tocado no TCA. Nos bastidores, em resposta a uma fã que “sugeriu” que o próximo show deveria ser na Concha Acústica, ele emendou um “por favor!”, enfático. Afinal, Otto sabe que o jogo está ganho e duas medalhas, dois shows, dois dias consecutivos, são para pendurar na parede.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns! estou degustando pouco a pouco tdo isso aqui. Entrevista show!