segunda-feira, 9 de julho de 2007

Paisagem na Janela

por Ledson Chagas

Violões, batida de limão, as conversas sobre arte e política, aquele clima saudável de acolhimento familiar (bem diferente da imagem das “pessoas na sala de jantar”), sonhos e juventude. Essa é uma imagem que pode retratar bem o que era o Clube da Esquina. E para a decepção de músicos americanos como o guitarrista Pat Metheny ou o tecladista Lyle Mays, o “Corner’s Club” não havia sido edificado com blocos e cimento, mas sim, com muito talento e criatividade. Imagens como a dos meninos Lô Borges e Beto Guedes se conhecendo por causa de uma patinete e, mais tarde, em sua banda cover dos Beatles, a The Beavers, ou ainda, a de um certo “Wilton” (Nascimento) e sua W’s Boys (com os amigos Wagner Tiso, Waltinho, Wilson e Wanderley) lá pelos idos de 1963, revelam que a musica e a amizade foram os verdadeiros alicerces desse “movimento musical”.
E se os gringos tem a esquina da Haight com a Ashbury como uma de suas mecas da música, no Brasil, foi no cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis, em Santa Teresa (MG), que se consolidou a sonoridade do grupo de amigos que resultaria no clássico álbum de 1972,o Clube da Esquina. Bituca (Milton), Lô e Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Toninho Horta, Beto Guedes, Wagner Tiso, Novelli... enfim, os mineiros haviam plantado uma semente que germinaria. E por maior que tenha sido o reconhecimento ao seu trabalho, como o sucesso de suas músicas, a sólida carreira, inclusive internacional, de Milton Nascimento e Toninho Horta (melhor guitarrista de 1977 pela revista Melody Maker) e os discos solo de Lô Borges e Beto Guedes, o grande legado desse álbum, dessa sonoridade, foi a influência que se perpetuaria nas veias da MPB, do rock nacional, do jazz americano e vários outros segmentos da música nacional e internacional. Do progressivo do Terço ao pop do 14 Bis, do Jazz de Wayne Shorter e Herbie Hancock ao rock rural de Sá, Rodrix e Guarabyra, dos experimentos do grupo UAKTI á música latino-americana do Grupo-Água e do Tacuabé. Tudo isso tem um pouco do DNA do Clube.

Sou do mundo, sou Minas Gerais

Lançado em 1978 pela EMI-Odeon, com produção de Milton, Novelli e Ronaldo Bastos, o álbum duplo Clube da Esquina 2 (não vá confundir com o primeiro, Clube da Esquina, de 1972) é o exemplo de álbum que deve ser ouvido várias vezes (acredite no velho clichê dessa vez) para a captação de seus mínimos detalhes, tanto nas letras quanto nos seus vários instrumentos (que vão do charango e o bambu aos cellos e violinos). A rica sonoridade reúne da música sul-americana do Tacuabé á verve cubana de Pablo Milanês, além de samba tocado pelo Azimuth. Definitivamente, não é um material de fácil apelo para quem está acostumado com uma música mais... ”extrovertida”. A primeira faixa, Credo, é iniciada com um trecho de San Vicente (do álbum de 72) cantado em coro. Porém, o que era influência se torna parceria, e o grupo Tacuabé reproduz a sonoridade latina emulada no primeiro álbum. A bela Nascente, um poema quente e delicado cantado por Milton e Flávio Venturinni, traz Francis Hime num ótimo trabalho ao piano. Em Ruas da Cidade, a letra de Márcio Borges lembra que cidade com nome de índio é muito mais chacota que homenagem (Guajajaras, Tamoios, Tapuias, Tupinambás, Aimorés/Todos no chão/A cidade plantou no coração tantos nomes de quem morreu/Horizonte perdido no meio da selva/Cresceu o arraial). Flávio Venturinni acompanha ao órgão a voz melancólica de Lô Borges e a gaita tristonha de Maurício Einhom.

A mais bonita do álbum, Paixão e Fé, traz a religiosidade (musical) do Clube, numa critica à privação exigida pelo cristianismo. O bandolim de Beto Guedes lembra uma harpa natalina e o coro dos Canarinhos de Petrópolis dá o tom “solene” da letra cantada por Milton (um fantástico arranjo vocal de Vermelho e Tavinho Moura). Destaque também para Venturinni no piano e orgão. Casamiento de Negros é a adaptação de uma música folclórica do Chile feita por Violeta Parra (1917-1967). A artista foi influência para a renovação da música latinoamericana (tanto em seu país, com o movimento “Nueva Cancion Chilena”, quanto em Cuba, com a “Nueva Trova Cubana”) promovida pelo encontro entre o pop e o folclore. Olho-D’água, de Paulo Jobim e Ronaldo Bastos, é interpretada de forma tensa e dramática por Milton e os Canarinhos de Petrópolis. João Donato toca piano e trombone e, junto com os cellos de Jaques Morelenbaum, empresta mais dramaticidade à música. A letra é enigmática, citando o nome de pessoas que sumiram (possíveis vítimas da ditadura militar?) e de cidades. Canoa, Canoa tem um outro ótimo trabalho no arranjo vocal de Milton. Um instrumento chamado bambu insere o ouvinte num rio calmo perdido na selva, lar dos Avacanoê, etnia indigna da família Tupi-Guarani citada na música. A primeira parte do álbum traz ainda a parceria entre Milton e Rui Guerra (E daí?) e a música dupla cantada por Milton e Elis Regina (O que foi feito deverá/ O que foi feito de Vera).

Um pouco mais fraca, a segunda parte do álbum duplo é iniciada por Canção Amiga, um poema de Carlos Drummond de Andrade de 1948 (o mesmo da cédula de 50 cruzados novos). Praticamente recitado por Milton, é acompanhado pela voz singela do menino Kiko, entoando uma bela melodia, além dos cellos e flautas que embalam os caminhos citados no breve acalanto. Cancion por la Unidad de Latino América, composição de Pablo Milanês e Chico Buarque, tem seus versos em português e espanhol interpretados por Chico e Milton. Uma típica “canção-contexto”, contempla a História em si e aquilo que se tornava história naquele momento (Quem vai impedir que a chama/Saia iluminando o cenário/Saia incendiando o plenário/Saia inventando outra trama). O coro nos últimos versos é um dos poucos elementos que lembra o som dos mineiros nessa música, um pouco deslocada do álbum. O contrário acontece em Dona Olímpia. Música de Ronaldo Bastos e Toninho Horta, carrega a assinatura desse último e, no entanto (talvez por isso mesmo), é muito “Clube da Esquina”. Tem o melhor (um dos poucos) solo de guitarra do álbum. Curto e intenso.

A melhor música do segundo disco é Testamento, de Nelson Ângelo e Milton, uma “dança-das-cadeiras” entre os elementos do “poema do índio”. Tem uma ótima percussão, cellos e trombones, mas o arranjo vocal certamente é a preciosidade dessa música, além do solo de bambu no final e a flauta de Danilo Caymmi. Maria, Maria, uma das mais famosas, tem aqui a melhor de suas muitas interpretações. Com pouco mais de 3 minutos, consegue proporcionar dois momentos geniais do gênio (perdoem a redundância) de Milton Nascimento. De que dimensão esse homem tirou aquele simples e belo larárá que se inicia a 01:20 de música? De onde veio o coro tribal que corre a partir de 02:30? Isso, talvez nem ele mesmo saiba. E nada como Que bom, Amigo para finalizar esse álbum. O verso “Que bom, amigo/Poder dizer o teu nome a toda hora/A toda gente” toca qualquer um que tenha um amigo de verdade e saiba o quanto é satisfatório o simples ato de dizer o nome daquela pessoa que se gosta. A música estabelece diálogo com o final de Cais (do álbum de 72) e é uma síntese da sonoridade dos mineiros. Está lá a tensão do arranjo de Wagner Tiso, o poderoso coro, a beleza das flautas e a voz de Milton Nascimento. Enfim, o bom e velho Clube da Esquina.

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