terça-feira, 20 de novembro de 2007

Show - Lobão - Concha Acústica - 09/11




Chega de Verdade


por Rodrigo Sombra


Amado Caetano: Chega de verdade / Viva alguns enganos”, cutucava Lobão no provocativo rap-maracatu Para o Mano Caetano, seis anos atrás. Ironicamente, os versos antes destinados ao filho de Dona Canô bem que poderiam descrever o atual momento artístico do lobo. Cansado de remar contra a maré, Lobão resolveu aposentar as vestes de quixote da música independente e fez de 2007 o ano de seu retorno aos holofotes centrais da indústria do disco. Para tanto, escolheu a via mais dissonante à sua velha luta anti-gravadoras, o projeto Acústico MTV. A mamata estava garantida. Cagando para acusações de traição, o cantor dá uma guinada na carreira, belisca um troco no mole e comete, num show marcado pelo cinismo, uma simulação frouxa e desavergonhada de seus melhores dias.

Segundo Lobão, seu novo álbum reinventa a pausterizada fórmula de ‘violões para as massas’ da MTV. Balela. Lançar luz sobre o repertório de sua fase independente e evitar convidados arroz-de-festa não bastam para se falar em reinvenção. O disco colide vários clichês dos acústicos anteriores e, após sua passagem por Salvador, a sensação de enfado comum a este tipo de proposta fica ainda mais evidente.

Salvo os arranjos country das baladas cornudas (especialidade de Lobão), o resto do show cai numa linearidade redundante e parece querer testar a paciência do público. A opção por emular o nervosismo das guitarras e adicionar peso aos violões, longe de abrasar, convida a bocejos. Na direção oposta, canções new wave como Corações psicodélicos se diluem em música de acampamento, festa na floresta, quando o rock pra pistas que ela realmente é dita tendências junto à moçada indie. Sentado confortavelmente com um copo de whisky aninhado entre os dedos, Lobão urra, grunhe e mostra os dentes como manda o figurino do roqueiro raivoso. È divertido assisti-lo uivar sua agressividade postiça, desenhando em trejeitos e caretas uma rebeldia calculada, enganosa.

A cenografia adornada por de molduras vazadas e o número excessivo de músicos e instrumentos dão a impressão de luxo cafona. “Parece um mix de Eagles com Roupa Nova”, sussurra uma amiga ao pé do ouvido. E completa: “se ele tocasse Hotel Califórnia, eu viria abaixo”. É, seria a piada do ano, caso o dono da festa não tivesse arquivado a ironia no passado. Em quase duas horas de show, Lobão mal se esforça para escapar da autoparódia e, pior, faz do palco da Concha Acústica um lamentável festival de puxa-saquismos e táticas rasteiras para seduzir o populacho.

Como se no formato Acústico MTV já não garantisse per si soluções de fácil apelo junto ao público, a noite guardaria tempo para uma cover suicida de Help e o inédito “sim” ao mantra alcoolizado “Toca Raul”. A insistência em relembrar o legado de Raulzito devia dar cadeia. Para Lobão e Fábio Cascadura, ambos trajando vermelho como correligionários petistas, ensejou desajeitadas interpretações das óbvias Gitã e Maluco Beleza, seguidas pela lambeção de saco do cantor baiano, que, sem a menor desfaçatez, exagerava: “Lobão, essa é a Salvador que te ama!” Estampando um maiúsculo “peidei” bem ao centro do peito, o lobo arreganha a gengiva num sorriso matreiro. Deixando alguma coisa escapar, a Soterópolis diz amém. Seja como for, a aporrinhação durou menos de uma noite. A lisergia tingida de brega por Fernando Catatau e sua trupe varreria da memória a picaretagem decadente assistida na Concha. Vida longa ao Cidadão Instigado!


Eu, Cabo Anselmo

por Aguirre Talento


O enredo de Eu, cabo Anselmo, de Percival de Souza, poderia facilmente ser tido como um plágio a uma das aventuras de James Bond escritas por Ian Fleming. Mas o cabo Anselmo, ao contrário de 007, é um personagem real (ou melhor dizendo, surreal), que se infiltrou como espião em situações cinematográficas. Foi uma figura importante na ditadura militar brasileira, tanto para a esquerda quanto para a direita. Não simultaneamente.

O livro, pretensamente uma obra de jornalismo literário, está mais para jornalismo. Mas a escolha se justifica: a história de Anselmo é tão inacreditável que, se Percival de Souza resolvesse penetrar em seu discurso e ser um narrador onisciente, possivelmente perderia sua credibilidade. Assim, a narrativa reveza-se entre os depoimentos do protagonista, contando e refletindo ele mesmo sobre sua história, e alguma narração do autor Percival, buscando situar o leitor ou consultando fontes alternativas.

O grande mérito de Percival, com certeza, foi ter conseguido acesso a esta fonte privilegiada. E não perdeu a oportunidade, obteve entrevistas longas das quais muitos trechos estão publicados no livro. Passeou com Anselmo pelo Nordeste, em regiões onde havia passado sua infância e onde se deram momentos importantes da história contada no livro.

O traidor


A história de Anselmo é apresentada logo no início da obra, porque seu foco não são os acontecimentos em si, mas suas causas, suas justificativas, suas conseqüências e sua veracidade – porque, antes do depoimento do protagonista, muitas questões ao seu respeito permaneciam obscuras.

“Traidor”. Essa é uma palavra-chave da obra, e parece incomodar muito a Anselmo ser rotulado desse jeito. Figura importante da esquerda brasileira, o jovem marinheiro Anselmo liderou um movimento que acabou precipitando a ocorrência do golpe militar de 1964. Depois, foi conhecendo o comunismo, sendo praticamente “adotado” pelas lideranças da esquerda brasileira da época. Foi mandado a Cuba para aprender técnicas de guerrilha e voltar ao Brasil pronto para derrubar a ditadura.

Mas o tiro saiu pela culatra. Já de volta ao Brasil, foi capturado pelos militares e teria sido morto se permanecesse calado e não desse nenhuma informação. Mas recebeu a tentadora proposta de ajudar a combater os guerrilheiros, os seus companheiros, e permanecer vivo. Mais ainda, ter sua vida de volta, sem precisar mais andar pelas ruas com medo de ser capturado. Anselmo aceitou, e passou a ser um espião vivendo em meio aos seus antigos companheiros, denunciando-os e eliminando-os.

Anselmo não se mostra arrependido em momento nenhum, e muito menos se vê como culpado. “(Você) dorme sempre em paz? ‘Putz, tranqüilamente’”. É essa sua resposta. Teria sido mesmo uma traição? Por quê ele tomou essa decisão? É Anselmo, o próprio, quem irá responder a essas perguntas ao longo do livro-reportagem de Percival de Souza.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Verdades Gozadas

Baixio das Bestas
(Cláudio Assis. Brasil-2006. 80 min.)

“Traz a manteiga que hoje eu vou comer cú”. Diante de todas as boas sacadas e momentos “corajosos” de Baixio das Bestas, é justamente esse pedido do personagem Everardo (Matheus Nachtergaele) que escolho para começar tal resenha. A fala fecha a seqüência da orgia protagonizada por Everardo e Cícero (Caio Blat) em um breguinha (prostíbulo, para os mais polidos) fuleiro de beira de estrada. Os 2 jovens, típicos filhinhos de papai inconseqüentes e hedonistas, formam um dos três núcleos escolhidos por Assis para retratar o drama da condição feminina em um pequeno povoado da Zona da Mata pernambucana. As três prostitutas (Dira Paes, Hermila Guedes e Marcélia Cartaxo) formam o segundo núcleo, enquanto Auxiliadora (Mariah Teixeira) e seu avô, e pai, conforme é cogitado por seus vizinhos, Heitor (Fernando Teixeira) são os personagens principais da tríade.

Apresentando aqui em Salvador, na quarta noite do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual (9-14 de Julho), o filme é definido por seu diretor como uma “reação” contra aqueles que apenas “rastejam” perante as adversidades. E a reação realmente é “bombástica”. Os planos capturados pela bonita fotografia de Walter Carvalho vomitam as agruras das “meninas de vida fácil”, como na cena em que a câmera enquadra por cima o marvado do Everardo pisoteando a cabeça da prostituta (personagem de Hermila Guedes), após ter logrado êxito em sua missão de: “comer o cú da puta”.

Outra cena que tornou quase obrigação o uso da palavra “cru” (não vá confundir!) nas discussões sobre o filme, é o estupro e sodomia de uma das prostitutas, Bela (personagem de Dira Paes) pelo grupo de filhinhos de papai, mostrado através de suas sombras projetadas na parede. Tais cenas são a assinatura pessoal do diretor Cláudio Assis (em Amarelo Manga, seu primeiro longa-metragem, Lígia (Leona Cavali) expõe seu bucetão de pentelhos aloirados em um big close). As cenas fortes e duras (?) fazem parte de um cinema que tenta agir, dando um tapa na cara do espectador. Gozando em sua cara imagens da "realidade nua e crua".

Nisso consiste um dos problemas do filme. A escolha por recortes da vida de personagens que, apesar de verossímeis, tem um “tempo de vida” essencialmente maniqueísta. Não há construção de personagens, mas instantâneos de seus momentos de ação, em que cada um desempenha seu papel esperado. O vilão Everardo, por exemplo, colocaria o Zé Pequeno pra correr. Bela, a prostituta que já assimilou seu modo de vida, está sempre de pernas abertas... Ainda que isso não constitua um problema em si (certamente, nem mesmo Assis, do alto de seu “ativismo”, propõe expor a realidade, que não seja através de recortes), o maniqueísmo contribui para tornar mais tênue a linha entre a denúncia e o fetichismo na imagem. Principalmente quando se trata de Cláudio Assis, acostumado a inflar platéias de “revolucionários-burgueses” com seus palavrões e jeitão de Wolverine (no seminário isso ficou mais do que provado).

A outra crítica, à monocultura da cana-de-açúcar, vem através das imagens do canavial ardendo em chamas, de forma sutil, metafórica, condizente com o padrão intelectual de quem freqüenta seminários de cinema (e de quem escreve sobre eles). Nada de verdades escarradas, como as cenas da putaria ou as conversas dos peões.

Contribuindo como naturalismo do filme, as interpretações e os diálogos são seu ponto forte. Dos ditados populares, ricamente colhidos a lá Guimarães Rosa, aos “felá-da-puta” dos arruaceiros, tudo colabora na caracterização realista da película (prejudicada somente pelo, já citado, maniqueísmo). Fernando Teixeira faz um ótimo trabalho na interpretação do típico “véio fofoqueiro” e falso-moralista. A composição da explorada, até mesmo no nome, Auxiliadora, também é impressionante. Mérito da atriz Mariah Teixeira.

Baixio das Bestas, enfim, não traz finais tristes ou felizes. O recorte escolhido por Assis, denunciante como uma grande obra, ou fetichista como uma frase qualquer escolhida para o início de uma resenha, simplesmente encontra seu limite.

Ledson Chagas

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Entrevista - Otto

Pra estrear com o pé direito: Nos dias 19 e 20 de maio, o pernambucano Otto se apresentou em Salvador, na sala principal do Teatro Castro Alves, dentro do projeto MPB Petrobrás. O Umabarauma esteve presente às duas apresentações e aproveitou para bater um papo com o cantor e percussionista. Na entrevista, Otto discorre sobre religiões afro, música e maconha. Ao final você encontra uma resenha dos shows.






Umabarauma: Referências ao candomblé são sempre recorrentes nas suas letras. Qual foi a tua formação religiosa, como foi que você travou esse primeiro contato com crenças afro-descendentes?

Otto: Desde Bú (a babá), desde Cumade Júlia. Em 74 eu ganhei de Vanda, uma amiga da minha mãe, um disco de Martinho. Foi por meio da música, de pessoas que naturalmente freqüentavam a minha casa, que eram queridas e que faziam parte dessa religião. Não chamo nem de religião. Ela celebra a ancestralidade. Essas pessoas sempre foram bem vindas, como padres, etc, na minha casa. E eu me identifiquei prontamente pela música, pelo samba...

Umabarauma: Não foi uma coisa sectária...

Otto: Não. Eu estudei em colégio de padres, ia à missa, fui coroinha de D. Hélder, várias coisas.


Umabarauma: É comum em suas entrevistas e mesmo nos shows, a discussão acerca do poder de escolher a música que se quer ouvir. Qual o alcance desse poder de se ouvir uma música ou a liberdade que existe nesse processo? Como é que você percebe o caminho de um ouvinte que não tem acesso à sua música, que não tem acesso às mídias que divulgam o seu produto, chegar a conhecer o seu trabalho?

Otto: Vamos por partes. Primeiro, a importância de se escolher a própria música: Isso é uma coisa que eu peguei de uma filosofia, a filosofia de achar que quando a gente tem acesso à música, a gente já tem outros acessos. As pessoas que têm acesso à sua própria música, que gostam daquilo, têm uma coerência natural da arte. Já se mudam outras coisas. Já se muda a qualidade de vida, mudam os critérios pelos quais ele vai viver no mundo. A outra coisa é como minha música chega a outras pessoas: Pelo tempo, por projetos como este, a preços populares, num teatro deste tamanho, onde as pessoas se sentem bem, do programa, sabe... de participar. Essas arquiteturas são feitas pra isso. Acho que o teatro tem de trabalhar nisso. Se o teatro Trabalha a 14 reais, 7 reais, ele está sendo muito coerente e dadivoso. Ele coloca essas pessoas...
Umabarauma: Você não tomou nenhuma regulagem depois que mandou todo mundo levantar, hoje? Por que aqui não pode vir de bermuda, não pode vir de sandália...

Otto:
Não, não! Pelo contrário. Você vai pra Europa, vai pra qualquer lugar...(pausa).Não é isso, o problema não é esse. As pessoas estavam afim de celebrar e celebraram, de dançar, dançaram.

Umabarauma: A gente tava assistindo o show sentado e estávamos muito inquietos, parecia que tínhamos formigas dentro das calças...

Otto: Mas o teatro, ele é feito disso, de cadeiras. Não é feito pra não sentar. Algumas vezes eu acho que há uma empolgação da platéia que é maior até do que a logística que compra. Mas é perfeito, assim... Ele é feito pras pessoas sentarem. Eu adorei. Se eu consegui tirar essas pessoas daí (dos seus lugares) foi um momento de celebração. Eu tenho certeza que meu público não é dado a vandalismos, porque tem essa coisa com os outros. Eu acho que o público é... é o momento, senão seria diferente. No fim, quem entra, quem toca num lugar como esse aqui, sabe o poder que é. O tamanho é grandioso, modifica tudo. O padrão de sua voz é outro. Uma coisa é você cantar em uma garagem, outra coisa é você cantar num teatro com uma altura dessas. Foi maravilhoso. Mas... é isso. Porque eu tô falando isso? (gargalhadas).

Umabarauma: Em entrevista à revista Caros Amigos, Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado,revelou que por certo período de tempo houve uma espécie de obscurantismo entre a música produzida nas diferentes regiões de Pernambuco. Comentou que o surgimento do manguebit não rompeu as muralhas de Recife e não chegou imediatamente ao sertão, e que os periódicos pernambucanos, enquanto celebravam o movimento enaltecendo a “cultura pernambucana”, desconheciam completamente e não noticiavam manifestações artísticas vindas do interior, de cidades como Salgueiro, Petrolina, Pedro Velho...

Otto: (confuso)... Ele deve ter sua razão, Lirinha é muito inteligente. Talvez seja o ângulo dele. São milhares de ângulos, milhares de critérios, e o dele eu respeito muito. Se ele tá falando isso, deve ter alguma coerência. Ainda bem que ele se prontificou a analisar a coisa por esse ângulo, é muito generoso da parte dele. Eu acho que Recife, como qualquer capital, fora ou dentro do eixo, passa por problemas regionais. Acho que Brasil ainda precisa de muita sensibilidade pra atingir uma regularidade na tentativa de solver esses problemas. Nesse momento o nosso Nordeste, o nosso interior... (pausa). Muito mais Arcoverde! Se é difícil chegar ao Recife, se é difícil romper as barreiras do Recife, imagina outras. Mas eu acho que... (Pausa). O Luís Gonzaga é de Exú, é do sertão e é um homem do Brasil todo, como o Lirinha também. Não chegam, mas a gente sempre tá mandando. Serra Talhada, Arcoverde, que é a cidade dele, sabe... o Lirinha tem sua cultura e ele foi criado dentro dessa cultura, ele é uma voz pensante. Talvez seja difícil chegar além do Recife, mas é mais difícil ainda chegar no interior, você tá entendendo? Mas ele vem, chega e chega forte. Ainda por cima tá levando a nossa bandeira do interior. Eu sou do interior, da mesma região que ele. Posso dizer que somos bons representantes dessa área, que é a mais problemática, no sentido de informação, de comunicação. É como a Suíça e o Brasil: são distantes , mas também têm os seus atalhos.

Umabarauma: Há algumas semanas houve uma discussão em escala mundial acerca da descriminalização do uso da maconha que culminou com marchas em mais de duzentas cidades. Foi um debate rico e diverso, não-baseado em um panfletarismo vazio. Por que aqui ainda temos aquela cultura de que pessoas públicas não podem se pronunciar a respeito, sendo você um cara que não se melindra em falar, até nas suas letras, não tem pudores...

Otto:
Eu acho que o usuário tem de manter a coerência, nunca perder a coerência com seus filhos, sua realidade, porque não tem um fator que... (pausa) É melhor até que a bebida. Eu acho que o ser humano lidaria melhor fumando um produto natural do que bebendo. Mas eu acho que essas coisas vão caindo em desuso. O mundo ele vai ter drogas, drogas... vai ter repressão, mas repressão é covardia. Enquanto houver covardes, a gente vai esperando um pouco. Se um dia me pegarem fumando o meu baseado, eu vou dizer: "por favor senhor, não me bate, me leve!" (risos). Vou pra delegacia e vou conviver com isso naturalmente. Quando eu tinha 14 anos eu falei pra minha mãe. No mundo, já se quebraram várias outras coisas, e essa coisa da maconha a gente não deve nem... (pausa). Deixa quieto! Tem que deixar pra lá, não tem que criar debates com covardia, com hipocrisia. Ela é mais leve do que a bebida, ela é mato, é natural, medicinal, tem toda uma cultura. O Brasil é um país misturado, de africanos, de raízes de campo, de mato. Não tem como ser contra o que é natural.

Umabarauma: Inclusive um dos pontos do manifesto que vai ser levado à conferência internacional anti-drogas da ONU, ano que vem, é um pedido de desculpas formal do governo brasileiro às populações afro-descendentes. Por muito tempo se enquadrou o uso de maconha e candomblé, ou prática de magia, de acordo com a época, no mesmo artigo...

Otto: Mas eu vou dizer uma coisa... Olha, em 1911, 1912, Mãe Menininha foi presa aqui, com 19 anos. Na delegacia fizeram o B.O. dela, por prática de "magia". E vejam a mulher que ela foi! Essa luta, essa coisa se quebrou muito no dia de hoje, não dá nem pra gente discutir mais.Tem tanta coisa no mundo. Quando você entra no candomblé, quando você conhece o candomblé, quando se conhece o convívio do povo com o candomblé, você vê que não tem esse bicho de sete cabeças.

Umabarauma. Já voltamos ao candomblé ... Aqui na Bahia vive-se um momento de estranhamento entre cristãos fundamentalistas e aqueles que cultivam crenças afro-descendentes. Rixas movidas por sectarismos e intolerância religiosa. Em Salvador, por exemplo, há a recente polêmica do “acarajé cristão”, em que baianas ligadas a igrejas evangélicas abominam as vestimentas folclóricas, descaracterizam toda a indumentária da baiana de acarajé, e muitas vezes condenam os fiéis que comem nos tabuleiros tradicionais.

Otto:
Aí eu vou te dizer uma coisa... só a Bahia pra inventar essas coisas pra discutir. Porque (aqui) as raízes do candomblé são muito fortes. Que isso sirva de alerta contra o radicalismo.







Resenha dos Shows
por Marcel Bane



Difícil imaginar uma ciranda de malucos em alta rotação em pleno palco da nobilíssima Sala Principal do Teatro Castro Alves. Mais difícil ainda imaginar o que se passava pela cabeça da produção do show quando decidiu realizar um show de Otto lá. A administração do TCA bem poderia, de imediato, pensar em colocar cintos, nas cadeiras. E manter as chaves com os seguranças, tamanha a preocupação destes em acalmar os ânimos do público, que só quer se levantar. Ou abandonar de vez a idéia estapafúrdia de trazer bombas humanas para se apresentar em seus palcos. Alguns freqüentadores assíduos das poltronas rubras confortáveis do teatro, aquelas pessoas alternativas não sei-ao-que, que adoram ficar no Foyer, tagarelando sobre políticas culturais, tomando uma xícara de café, e que vai ao teatro “só para ver o que se passa” , ficaram indignados quando o público resolveu, enfim, levantar, maculando a nobreza do ambiente. Um concerto envolve troca entre artista e público. É assim que funciona. Peraí... Não é o show da Maria Bethânia? Nem do Chico Buarque? Quem é aquele maluco?

Otto é um showman iconteste. Um espetáculo, ele mesmo. Se não houvesse a banda, apenas o homem e seu pandeiro, ele carregaria o show por quase duas horas. Seria uma espécie de Otto Talk Show, com direito a gracejos, cambalhotas, pulos, troça, sem sinais de cansaço. Não que a banda seja um acessório, herege! As engrenagens da roda que faz essa ciranda de maluco girar são bem azeitadas. A guitarra de Fernando Catatau é técnica, óleo puro. Júnior Boca e Rian Bezerra vaselinam os dedos antes de empunhar sua guitarra e seu baixo, respectivamente, e dar ritmo à coisa toda. Beto Apinéia, dono de uma técnica de Bateria vigorosa, extremamente bem marcada, atonal, cheia de repiques que remetem a Pupillo, da Nação Zumbi. A percussão de dois que soa como dez, a cargo de Marcos Axé e André Male derramam azeite doce sobre a salada musical. E por fim, Daniel Ganjaman, personagem de mangá adolescente qualquer, daqueles tipo Bey Blade (não é, mas poderia ser), e seus teclados são puro KY. O resultado de tanta lubrificação é um som bem mais orgânico que os registros em Cd. A música, enfim, entra sem dor e sem interferências. A banda sobressai , revelando a riqueza harmônica, os intrincados tempos das músicas, muitas vezes escondidos atrás de tantos elementos eletrônicos. Proponho aqui um desafio a todos esses artistas que fazem MPB moderninha pra gringo: Se Fernanda Porto deixar as pick-ups em casa, e a Bossa Cuca Nova puxar a tomada do computador, quanta música sobra?

O repertório, não surpreendentemente, foi basicamente o mesmo do Dvd MTV apresenta. Desde o início, com Anjos do Asfalto, não faltaram seus maiores êxitos. De Dias de Janeiro, a Ciranda de Maluco, de Tv a Cabo/ o que dá lá é lama, a Bob, passando por Nebulosa , Low e uma versão envenenada de Renault/Peugeot.

Otto é um coquetel molotov a base de whisky. Esquece o set list, dá cambalhotas, atropela as letras, enrouca a voz, tal qual um Tom Waits possesso. Lá pela metade do show da primeira noite, depois dos apelos públicos por uma permissão de levantar das cadeiras, ele consente: “Levanta aí! Eu tô falando Português?!”.

Na segunda noite, apenas água, pra reidratar. “Sempre que venho aqui, vou parar no mercado do Peixe. Bebi pra Caralho!”, Entrega. Curiosamente, apesar da água, a H2O, o show rola mais descontraído. O público, toma a frente do teatro de assalto logo no início. A ciranda de malucos começa a girar, inspira o homem sóbrio em cima do palco. Ele desce, caminha entre os seus, improvisa. Mete uma versão de Chame Gente, de Morais Moreira. Chama ao palco o mestre Lourinbau, que abriu o show em ambas as noites. Otto está estupefato. Nas suas próprias palavras: “ Ganhei um medalha hoje” . Está deslumbrado por ter tocado no TCA. Nos bastidores, em resposta a uma fã que “sugeriu” que o próximo show deveria ser na Concha Acústica, ele emendou um “por favor!”, enfático. Afinal, Otto sabe que o jogo está ganho e duas medalhas, dois shows, dois dias consecutivos, são para pendurar na parede.

Crônicas de Vários Amores Loucos

por Wanderson Pimenta


Antes de existir o que alguém resolveu chamar de arrocha, existia Júlio Nascimento. Júlio dominou as paradas de sucesso do Nordeste antes do fim do século passado com um som dançante, meloso e simples, que uns diziam ser o legítimo brega, outros a velha seresta. E foi um álbum intitulado "Em ritmo de seresta", que retirou sua música de dentro dos cabarés e a jogou definitivamente nas rádios e nos sons dos carros de muita gente. Nessa época, Júlio Nascimento se dava ao luxo de desistir de show na última hora mesmo contando com multidões à sua espera, e quando resolvia subir no palco, subia tão bêbado que mal conseguia empunhar o microfone.

Lançado pela Gema como K7 em meados da década de 90 e reeditado em CD em novembro de 2002, mesma gravadora que revelou Lairton e Seus Teclados para o Brasil e que já ostentou em seu time nomes da estirpe de Wanderlei Cardoso e Waldick Soriano, "Em ritmo de seresta" é a crônica da vida do pé-inchado que se ausenta de casa por alguns meses para trabalhar, seja como garimpeiro ou caminhoneiro, e quando volta, sua mulher já está com outro. Todas as músicas estão em primeira pessoa, como as clássicas "Leidiane" e "Dalziza", onde Júlio Nascimento narra a história do homem que parte rumo ao garimpo e quando retorna descobre que sua mulher "entregou o amor a quem quiser", como ele enfatiza em "Leidiane".

O teclado é a base de todo o disco e os timbres strings serpenteiam por todas as canções, com uma segurada nos acordes no início de cada faixa que não tem solo. E no mesmo mote do garimpeiro que parte rumo ao trabalho e volta com dinheiro no bolso, mas perde a mulher, estão "Chegada do garimpo" e "Lembranças do garimpo", terceira e quarta canção das 17 que compõem o disco.

Não existe um roteiro lógico entre as músicas. "Vou te matar de prazer" dá uma aula de sedução no bom estilo Júlio Nascimento, mesmo que na seqüência, "A volta da Leidiane", seja a canção do corno que já se conformou, "Luana" possua a mórbida temática do apaixonado que sonha com sua musa e suplica à lua a volta dela, lembrando os lúgubres escritos de Álvares de Azevedo, e "Como um dia de sol", que pode embalar qualquer casal em princípio de namoro. Em "A mãe da Leidiane", Júlio diz que não "prestar" é mal de família e em "A volta da Dinalva", ele prepara o terreno para a música mais doída do disco: "Dinalva". "Dinalva" transporta o ouvinte para uma trágica cena de flagrante de adultério, aonde o interlocutor ao chegar em casa e ouvir sua mulher gemendo, ameaça fazer o uso de sua arma de fogo. Júlio sabe sofrer junto com seus personagens, amar suas musas com intensidade peculiar e narrar a saga do homem traído com a precisão que até então poucos haviam conseguido.

Em "A volta da lua", a décima segunda canção de amor do disco, depois de várias doses de uísque o teclado é quem começa a cambalear. Os solos começam a se alternar como se os dedos do tecladista deslizasse por qualquer tecla, sem muito nexo. O anúncio do telefone de contato ganha destaque enquanto os primeiros acordes de "Deusa" e "Casa vazia" começam indefinidos, ganham sentido quando a quase rascante voz de Júlio Nascimento entoa as letras, mas retornam ao desarranjo do princípio nos solos finais.

Já sem fôlego, "Caminhão amigo", uma espécie de paródia descarada do sucesso do rei Roberto Carlos "120...150...200 km por hora" e a tapa buraco "Se você me prometeu" com seus timbres metalizados, são os motivos que quase tornam "Em ritmo de seresta" insosso em seu epílogo. Mas a última canção, "Sandra meu novo amor", em pouco mais de um minuto, fecha "Em ritmo de seresta" com a classe de suas primeiras músicas, revelando o talento nato de Júlio em lidar com as fêmeas como título de canções.

E é só procurar um boteco cinzento, colocar "Em ritmo de seresta" no som do carro o mais alto possível, ter em mãos uma garrafa com ¼ de cachaça, mortadela cortada em cubos e alguns limões, para começar a falar mal daquela desgraçada que te faz sofrer. Mesmo sabendo que isso só é possível no interior da Bahia.

Messias? Eu?

por Marcel Bane


É melhor rezar pelos seus pecados. O profeta que anunciou a chegada do messias gay, que viria redimir a humanidade, saído de um filme pornô dos anos 70 está de volta. Depois do tímido início com o belíssimo e intimista álbum homônimo, depois de ter sido atirado à condição de messias gay ele mesmo, de ter freqüentado a lista de melhores de 2001 com o pungente poses, e de dois álbuns que exalavam uma melancolia esperançosa, want I e want II, Rufus Wainwright lançou sua quinta missiva, este Release the Stars, em maio. Filho de dois ícones do folk canadense dos anos 60, Loudon Wainwright III e Kate McGarrigle, Rufus herdou do pai a habilidade de escrever canções simples, que acertam inexoravelmente o coração, como mísseis teleguiados. Da mãe, o faro instintivo para tecer melodias delicadas ao piano, a paixão pela ópera e pela música clássica. Longe da esquizofonia que acomete artistas que tentam misturar estilos diversos em uma salada musical, que muitas vezes soa estragada, o nosso bardo chega a um denominador comum. O estilo Rufus de fazer música. E abra-se um leque bem amplo para dar conta do quão variado ele pode ser: Vaudeville, rock, jazz, orquestrações rebuscadas, folk, tudo absolutamente pop. O mundinho epecializado em imprimir rótulos em páginas vazias apressou-se em aplicar-lhe a pecha de Pop-barroco. Mas e os beatles de Sgt. Pepper, já não eram exatamente pop e barrocos? Não à toa, Release the Stars é filho legítimo de uma transa entre os Beatles de Sgt. Pepper e o Elton John de Goodbye Yellow Brick Road.


Rufus, o batista, parece ter tomado um porre de Bourbon na noite de Sansouci, contemplando belos rapazes da sacada de seu Chatêau, e vomitou um lindo álbum, sem direito à ressaca no dia seguinte. O disco abre com um direto de esquerda na mandíbula dos que o reivindicam para si. Nada mais chato que gay militante, que precisa de um porta vozes, de alguém que carregue sua bandeira para banheiros masculinos, e eventualmente para a prisão: "Do I disappoint you?", abre delicada com o piano minimalista certeiro, termina grandiloquente e é entremeada de orquestrações oníricas. Alguém no orkut disse: - querido, não acredito que exista alguém que ouça Rufus e não compreenda Inglês! – Nem é preciso.


Rufus, o mensageiro, tem mais um recado à América. Desde california, carro-chefe de poses, ele já bocejava: " ...Califórnia, tão maravilhosa que eu prefiro ficar na cama..." , cantava. Em going to a town, vislumbra uma cidade que já foi queimada e onde moram amigos desapontados, para onde ele mesmo partiu, tão logo Bush se reelegeu: "estou tão cansado de ti, América... tenho uma vida para viver, fazer meu próprio caminho para casa..." Ele se cansou da América Republicana, aquela do pescoço vermelho, que acha dois homens se beijando mais perigosos que terroristas. A América que pariu de cesário Walt Whitman, e Allan Ginsberg se perdeu, no pior dos sentidos, lá atrás, no melhor dos sentidos. Os corais dão suporte e densidade ao álbum e à potente voz de rufus, que parece seguir a cartilha Jeff Buckley de cantar com intensidade. Os piores momentos deste e dos outros álbuns ficam por conta dessa mesma voz, especialmente quando ele senta sozinho ao piano e parece que a qualquer momento vai entoar a Ave Maria das seis.


Rufus, o advogado, clama que soltem as estrelas, pois sem elas não haveria a Paramount. A velha Hollywood já não existe mais. Ué, você não sabia?


Between my legs, a melhor do disco, é um rockão estradeiro, daqueles que dá vontade de virar a chave, pisar no acelerador e esquecer que a morte existe e anda por perto. Dá vontade de derramar uma lágrima por entre as pernas, seja lá o que isso signifique. Há uma citação ao fantasma da ópera, que soa quase como uma auto-paródia. Em Rules and Regulations, uma linha de baixo simples e grudenta conduz toda a melodia, acompanhada de um moog debochado, de um sublime naipe de metais, o que já está se tornando clichê, em se falando deste álbum. Em Slideshow são eles que dão a direção. Esta, aliás, uma baladona fodida de linda.O álbum ecoa as trombetas do apocalipse, amparadas em arranjos de cordas angelicais. A mixagem primorosa, a cargo de Marius De Vries, e a produção de Neil Tenant, do Petshop boys, valorizam as cordas e os metais. O dia do julgamento será delicado. Nada a temer, e o inferno não fica muito longe. O céu está na bandeja. É só apertar o play.